PPP em Portugal. “Havia crédito, havia
megalomania e a factura era para pagar depois”
megalomania e a factura era para pagar depois”
Por Ana Suspiro, publicado em 26 Out
2012 - 12:37 | Actualizado há 53 minutos 56 segundos
Mariana Abrantes de Sousa foi controladora
financeira do Ministério das Obras Públicas no primeiro governo de Sócrates
Entrevista publicada no ionline.pt a 26-Outubro-2012 em
·
http://www.ionline.pt/portugal/ppp-portugal-havia-credito-havia-megalomania-factura-era-pagar-depois
·
A economista Mariana Abrantes de Sousa será das pessoas em Portugal que
melhor conhecem o universo das parcerias público-privadas (PPP). O seu percurso
profissional passa pela banca comercial que financiou a Lusoponte,
concessionária da Ponte Vasco da Gama, até ao Banco Europeu de Investimentos
(BEI) e ao Estado, onde assumiu funções de controladora (controller) financeira
no Ministério das Obras Públicas de Mário Lino e Paulo Campos, do governo de
José Sócrates. Hoje segue o tema com paixão no seu blogue (PPP Lusofonia). Na
hora de apurar responsabilidades pela aventura portuguesa das PPP não poupa o
Ministério das Finanças, então liderado por Teixeira dos Santos, que falhou no
controlo da despesa de uma factura que era adiada, nem o Banco Europeu de
Investimentos (BEI), que financia sem correr o risco e sem assumir a
responsabilidade por apoiar projectos não viáveis.
Participou no projecto da Lusoponte, a que
chamam a primeira PPP portuguesa. Um ano depois de assinado, o contrato teve de
ser revisto.
Eu trabalhava no BPA e estive envolvida no projecto da Ponte Vasco da Gama.
Fazia a ligação entre a banca nacional e a estrangeira. Quando o governo
começou a aumentar as portagens – que deviam duplicar – aconteceu o buzinão e o
bloqueio na ponte. Pouco tempo depois houve uma crise financeira que fez subir
as taxas de juro, tornando o projecto insustentável do ponto de vista
financeiro. Para prosseguir foi preciso reequilibrar, isto é, compensar a perda
de receita e o aumento dos custos financeiros.
Nessa renegociação já era visível a
assimetria entre Estado e privados?
Sim. Eu estava do lado dos privados. O Estado tinha uma equipa pontual, o
Gattel, onde estavam pessoas bastantes boas e assessores estrangeiros. Mas eram
menos e estavam a fazer tudo pela primeira vez. Estavam a aprender enquanto
faziam.
O Tribunal de Contas arrasa o acordo de
renegociação. Houve compensações excessivas à Lusoponte?
Inicialmente, a concessão terminava quando fosse atingido um patamar de
tráfego, o que permitia uma partilha equilibrada de risco entre o Estado e os
privados. Se houvesse muito tráfego, a concessão terminava mais cedo. A grande
renegociação em 2000 eliminou essa variabilidade. O prazo foi aumentado e
passou a ser fixo. Foi uma grande alteração na partilha de riscos. É natural
haver renegociações, mas devem manter o equilíbrio inicial e não podem
desvirtuar o contrato inicial.
E isso aconteceu na Lusoponte?
Sim. Diria que na grande maioria das renegociações tem havido uma alteração
à partilha de riscos e isso não se devia fazer em regime de negociação directa.
Devia ser por concurso?
Em caso de uma pequena alteração de traçado, sem grande impacto nos custos
e na procura, é fácil de negociar porque se podem confirmar os custos
adicionais.
Se as alterações têm muito impacto na dinâmica do tráfego, as negociações
são mais difíceis. E se eu ainda estiver a negociar com dois concorrentes eles
vigiam--se um ao outro, equilibram-se nas propostas. Se eu estiver a negociar
só com um, estou na mão dele.
Mas o Estado também tem consultores.
O Estado está de um lado e do outro lado estão o concessionário e os seus
credores. E a banca tem um papel fundamental. O concessionário não pode aceitar
nada sem que a banca autorize.
Qual é o papel do BEI?
O BEI é o maior financiador, mas não é o maior credor porque quase sempre
tem garantias de pagamento da banca comercial. O BEI exigiu garantias de
crédito na Lusoponte e outras PPP que foram fornecidas por bancos que à data
tinham um rating aceitável. Gostava que ficasse claro o que está a acontecer
com essas garantias. Quando os bancos portugueses perderam esse rating, há um
ou dois anos, tiveram de ir buscar dinheiro ao BCE para caucionar as garantias a favor do BEI.
A maior ajuda que o BEI poderia dar a Portugal neste
momento seria libertar garantias de pagamento que estão caucionadas pela banca
portuguesa.
Isso aliviaria os custos das PPP?
Era importante. Não sei os montantes exactos, mas estamos a falar de
valores entre mil e 2 mil milhões de euros. O BEI tem uma postura de risco
muito especial. É o que eu chamo a postura de cinto, suspensórios, alfinetes e
fita-cola.
Ou seja, exige tudo?
Eu trabalhei no BEI, fui chefe de divisão em 1991. O BEI faz o trabalho de
casa e fica na fotografia da assinatura do contrato, mas não assume o risco. Os
credores são os bancos privados que estão a emitir as garantias de pagamento. É
crédito sem responsabilidade. Nós precisamos de crédito com responsabilidade.
Quem financia tem de assumir
responsabilidades para não apoiar projectos inviáveis como o BEI fez em
Portugal?
Exactamente. Não sei se o BEI esteve envolvido em todos, mas avaliar o
risco de tráfego é crucial. O risco de construção também deve ser ponderado,
porque há soluções que são muito caras só porque há dinheiro. Mas estamos a
falar essencialmente de dois riscos: o volume do tráfego e o willingness
to pay, a capacidade e disponibilidade do utilizador para pagar as
tarifas.
A revisão da Lusoponte não correu bem, mas
parece que não se aprendeu nada.
Nas tarifas (portagens), a solução foi mais ou menos equilibrada. Só mais
tarde, no acordo global, é que foi tudo posto em cima da mesa e reaberto. A
verdade é que não temos aprendido. Portugal é um dos países com mais PPP e com menos
estrutura institucional para gerir PPP. A Lusoponte foi um projecto-piloto e
foi criada uma estrutura de missão própria, que trabalhou relativamente bem.
Mas depois essa estrutura foi dispersa. Mudaram as pessoas e os advogados. …
Houve um descuido em manter a memória institucional.
Essa é a melhor forma de
desresponsabilizar.
É mais do que isso. Houve ingenuidade ou outra coisa qualquer que convenceu
quem era responsável de que não era preciso manter este conhecimento dentro do
Estado. Na banca, o gestor do contrato tem de acompanhar desde o início até ao
reembolso do último cêntimo. E se os credores fazem isso mais deveria fazer o
Estado. Portugal é um dos poucos países que não têm uma unidade central de PPP
como deve ser. Quando tentaram criar uma na Parpública, em 2003 [Manuela
Ferreira Leite], foi um grande avanço.
Quando teve contacto com a realidade dos
PPP do lado Estado?
Nunca estive directamente envolvida na negociação das PPP do lado do
Estado, mas desempenhei funções de controladora no Ministério das Obras
Públicas entre 2006 e 2009 e depois estive um ano na Saúde.
Os controladores deviam ser uma espécie de
fiscais das Finanças?
Mais ou menos. Reportávamos aos dois ministros, da tutela e das Finanças.
Os controladores não estavam dentro da hierarquia, pairavam sobre tudo. A
informação não tinha de passar por nós, mas podíamos pedi-la.
Esteve lá quando foi lançada a última
geração das PPP, as subconcessões?
Mas nada disso passou por mim.
Não devia ter passado?
Não fazia parte das minhas funções. A função do controlo financeiro
era a posteriori e não estava na cadeia de decisão. Era um
pouco o Tribunal de Contas sem dentes e sem staff.
Quando estava no ministério houve uma grande transformação. Os investimentos
deixaram de passar pelo PIDDAC e pelo orçamento do ministério. A despesa com
transportes e infra-estruturas submergiu com a desorçamentação. Quando dei
formação desenvolvi o conceito do icebergue para mostrar o que estava a
acontecer ao orçamento do ministério. Havia alguma dispersão de responsabilidade,
mas passava tudo pela Parpública.
Ou seja, pelas Finanças?
Sim. Havia comissões de acompanhamento para cada projecto. As Finanças
indicavam uma pessoa da Parpública que ao final do terceiro contrato já tinha
feito o curso. O Ministério das Obras Públicas indicava uma pessoa nova que
estava sempre a começar a aprender.
Há a ideia de que a decisão das PPP
rodoviárias esteve centrada numa pessoa: o secretário de Estado Paulo Campos.
Qual era o papel das Finanças?
As Finanças deviam analisar todos os contratos e avaliar se os critérios
básicos estavam a ser observados, nomeadamente quanto ao retorno do
investimento, às cláusulas contratuais e aos riscos para o Estado. Houve alguma
confusão. O concedente é o ministério sectorial que tem a obrigação de prestar
o serviço público. As Finanças têm a tutela financeira, mas o risco não é
deles, é do Ministério das Obras Públicas. Um dos problemas graves de
desorçamentar foi que estes investimentos saíram do orçamento do Ministério das
Obras Públicas.
E deixaram de estar sujeitos ao controlo
das Finanças?
É uma questão técnica. Antes a construção de estradas tinha de passar pelo
PIDDAC (Plano de Investimento e Despesas de Desenvolvimento da Administração
Central), que faz parte do orçamento anual. Uma concessão ou PPP não passa pelo
orçamento do ano. A grande falha das Finanças foi na gestão do conjunto dos
contratos. A Lei de Enquadramento Orçamental define que a lei do Orçamento do
Estado de cada ano deveria fixar um limite para o total dos encargos assumidos
com concessões naquele ano. E isso não aconteceu. Eu acho que as Finanças até
se envolveram demasiado na contratação individual e descuraram o limite global
para PPP e isso teve consequências muito graves. E eu tive esta discussão com
muita gente (o ministro Mário Lino ouvia-me algumas vezes, mas outras pessoas
não o faziam). Argumentavam: então as pessoas de Freixo de Espada à Cinta não
têm direito a uma auto-estrada?
Não é um argumento válido?
Se estou a construir mil quilómetros de auto-estrada, posso ter 200
quilómetros sem tráfego se os primeiros 800 quilómetros tiverem boa procura. Se
estou a construir os segundos mil quilómetros já não vou ter tráfego tão bom.
As subconcessões lançadas por esse governo (de José Sócrates) eram os terceiros
mil quilómetros. Estes projectos com baixo tráfego são da responsabilidade do
Ministério das Obras Públicas, mas também das Finanças, porque eram o
financiador e deviam ter dito onde estava o limite.
O facto de os contratos só começarem a ser
pagos a partir de 2014 contribuiu para esse descuido?
Claro. Se eu não tenho de pagar este ano, não tenho de introduzir no
Orçamento deste ano. O tráfego e a valia económica do projecto são quase
académicos porque eu não tenho de pagar já. Foi aí que as Finanças falharam. É essa
factura que estamos todos a pagar. Fizemos projectos com baixa valia em termos
de tráfego. Não era possível prever a dimensão da crise que hoje se vive, mas a
quantidade de PPP que fizemos causou parte do problema. Quando se continuou a
fazer projectos de quarta e quinta prioridade, o custo-benefício ia ser fraco.
Qual é a sua explicação para se ter
avançado tanto nas estradas?
Havia dinheiro.
Havia dinheiro ou crédito?
Havia crédito, havia megalomania e a factura era para pagar depois. Se sai
de casa com 20 euros, gasta 19 euros se for poupada. Há pessoas que saem com 20
e gastam 29. Ninguém tinha como sua a responsabilidade de pensar no tráfego
porque os projectos passaram a depender de pagamentos por disponibilidade. É
uma solução má. Qual é a solução para projectos com tráfego insuficiente? É não
os fazer.
Em Setembro de 2008 cai o Lehman Brothers
e o governo adjudica as estradas a preços mais caros.
Algumas opiniões defendiam que se devia travar e a maior parte dos países
travou. Em Portugal não se parou por vários motivos. Havia uma grande pressão
internacional para continuar porque era preciso manter a actividade. Toda a
gente entrou em pânico e a resposta foi dar estímulos à economia. Depois houve
a pressão das entidades envolvidas, os bancos, as construtoras. Apresentar
propostas custa alguns milhões de euros. E em terceiro lugar havia a ideia de
chutar para a frente. Como não era para pagar logo não havia travão orçamental,
porque a tal cláusula que devia servir de travão não estava a ser aplicada. O
único travão era o Tribunal de Contas, com o visto prévio. As regras diziam que
a proposta final não podia ser menos vantajosa para o concedente que a inicial.
Não foi surpresa que o tribunal tivesse recusado o visto.
Mas discutiu-se dentro do governo a
possibilidade de não fazer?
Não estive envolvida nessas discussões, mas sei que isso foi discutido na
medida do possível. Quando há determinação política de que é para ir para a
frente, quem é que vai dizer que não?
Essa determinação veio do primeiro-_-ministro?
Imagino que sim. Mas o que ficou claro para o mercado é que o Estado era
visto como um mãos-largas. Isso aconteceu em particular nas renegociações. Se
for demasiado facilitador, assume demasiados riscos e as agências de rating
cobram isso. Se sou condescendente e quero fazer um projecto à viva força que
não é muito forte, como é que faço? Ofereço mais garantias, faço pagamentos
maiores.
A falta de visão de conjunto repete-se na
comissão de inquérito às PPP que avalia concessão a concessão.
O problema das PPP em Portugal não é de um ou outro contrato. Se houver um
contrato mau, o efeito dilui-se. O problema é de gestão do programa de
concessões. Temos cem PPP em busca de um programa. É mais fácil entrar nas
coisas picuinhas da cláusula de cada contrato que ter uma visão distanciada que
diga quais devem ser os princípios básicos das PPP, como se vai avaliar se o
programa e os casos individuais são eficientes e sustentáveis.
Sente que alguma parte da sua mensagem
como controladora passou?
Fiz muitos alertas, mas não sei quais foram seguidos. As decisões não
passavam por mim nem por outros controladores. A nossa função era a
posteriori. Uma das coisas que fazia era olhar para a imagem dos projectos
no mercado. Do lado do Estado tem de haver rigor e exigência a defender os
interesses públicos. Pagamos duas vezes quando o Estado é mãos-largas. Se pagar
todas as facturas que me puserem à frente, sem conferir, o outro lado vai pôr
mais coisas na factura.
O Estado pode oferecer muitas facilidades, mas os bancos e os
concessionários privados têm o risco de o concedente não poder pagar. E se este
for demasiado generoso não vai cumprir todas as garantias e facilidades que
concedeu. É o risco da contraparte.
Quem empresta deve assumir
responsabilidades quando concede créditos inviáveis?
Quando a dívida é muito elevada, não basta ao devedor apertar o cinto. O
credor inicial tem de assumir parte das perdas derivadas dos seus erros de
concessão de crédito. Os credores internacionais foram aproveitando este longo
interregno de default que não é default, desde pelo menos 2009, para reduzir a
sua exposição aos países sobreendividados, passando a batata quente do crédito
malparado aos credores oficiais, como o BCE. Estamos a chegar ao fim desta fase
que tanto beneficiou alguns credores, sem aliviar os mutuários (os países em
apuros). E a austeridade revelou-se insuficiente para reduzir a divergência
entre os países com superavit e deficitários.
Qual deve ser então o caminho?
Agora começam as negociações duras. Vai ser necessário obrigar os credores
não oficiais que ainda restam a renegociar condições de pagamento. Estou a
falar de uma reestruturação da dívida e partilha de sacrifícios entre devedores
e credores. O regresso aos mercados, isto é, a busca de novas fontes de
financiamento, que são sempre mais caras, não pode resolver o problema da
dívida excessiva. Precisamos de condições de pagamento a 20 anos e a 2% e não a
dois anos e 5,5%.