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terça-feira, março 23, 2010

Escassez de especialistas na AP

[Este artigo de Opinião, publicado a 16 Março 2010 no Jornal de Negócios, faz uma boa descrição do dilema da gestão dos recursos humanos na adminstração pública: 
Como cultivar e cativar os especialistas mais escassos num contexto de distorções laborais e excesso de funcionários menos qualificados, quando as politicas e normas "tamanho único" provam ser ineficazes ou produzem efeitos indesejados como a recente corrida dos médicos à aposentação antecipada.]

Miguel Lebre De Freitas*:   Escassez

Um dos desafios mais importantes que o País tem pela frente é o da reforma da Administração Pública. O Estado é um prestador de serviços essenciais ao estabelecimento de actividades privadas e a competitividade de uma economia depende criticamente da combinação existente entre a qualidade da prestação pública e o nível de tributação. Ora, em Portugal, o Estado está demasiado caro para os serviços que presta.

Uma das razões para a baixa produtividade (média!) do Estado é o facto de a Administração Pública ter convivido demasiados anos com um grave problema de incentivos: as promoções eram praticamente automáticas e qualquer funcionário, independentemente do seu esforço, aspirava chegar ao topo da carreira. O resultado foi uma Função Pública que não acompanhou o progresso técnico e que, muitas vezes, inchou para colmatar pela quantidade o problema fundamental de baixa produtividade. O outro problema foi a impossibilidade do despedimento.

Hoje, existem em quase todos os organismos bolsas de funcionários com competências pouco adequadas às exigências dos serviços e cuja manutenção obriga as chefias a um esforço acrescido de planeamento inglório. Com a depauperação técnica da Administração Pública, os sucessivos governos foram perdendo a confiança nos serviços, passando a subcontratar no exterior tarefas que antes eram executadas por organismos do Estado.

Sem dúvida, a introdução de uma nova metodologia de avaliação está a contribuir para mudar este estado de coisas. Com a reforma, as promoções passaram a depender do desempenho e as chefias ficaram impedidas de dar notas máximas a todos os seus funcionários. Estes passaram a competir pela nota e até os mais negligentes se tornaram zelosos nos seus mínimos, pois sobre a possibilidade de ocorrência de três avaliações negativas paira agora o espectro do despedimento. Apesar de existir ainda uma grande margem de manobra para aperfeiçoamento, o certo é que a Administração Pública passou a contar com uma importante ferramenta, que concorre para alinhar os objectivos individuais pelos objectivos do conjunto. Pena é que a reforma não tenha tocado o sector da educação. Pena é também que muitos dos que hoje lamentam o facto de o Governo ter recuado nessa área não tenham na altura levantado a voz em defesa da política.

Um dos aspectos interessantes da reforma era a possibilidade de, em sede de concurso, a chefia poder negociar livremente a remuneração com o candidato, independentemente do salário de origem. A ideia era os concursos funcionarem como uma espécie de leilão, que facilitaria o encontro entre competências e funções e que ajudaria a aproximar as remunerações da produtividade. Acontece, no entanto, que tal liberdade produziu efeitos adversos: muitos funcionários que ganharam concursos conseguiram negociar com as chefias remunerações muito elevadas, bem acima do que seria razoável auferir numa função equivalente no sector privado. Para fazer face à situação, o Governo decretou agora um limite de dois saltos de escalão na progressão de carreiras por concurso. Com tal medida, o Governo aparenta ter recuado em matéria de flexibilização. No actual contexto, no entanto, a medida era necessária.

O problema é que a liberdade de negociação anterior tinha sido introduzida no contexto de uma importante distorção: sendo praticamente impossível contratar funcionários fora da Função Pública, os organismos públicos são forçados a competir dentro de um conjunto de recursos limitado. E não competem por um bem homogéneo mas, sim, por competências específicas, algumas das quais muito escassas na Função Pública, como sejam as das áreas da estatística ou da avaliação económica de projectos, [e médicos e profissionais de saúde]. Assim, quando passou a haver liberdade de negociação de salários, a renda de escassez passou a ser apropriada pelos vencedores dos concursos, gerando desníveis muito significativos entre os salários auferidos por competências equivalentes, dentro do sector público e entre o sector público e o sector privado.

Este caso lembra o problema das escolhas em segundo óptimo: na presença de uma distorção inamovível, a remoção de outra distorção não assegura necessariamente uma melhoria de eficiência. Neste caso, num contexto de barreiras [ou limitações]à entrada, a introdução da negociação livre estava a gerar uma subida excessiva de salários, que se traduzia em aumento da despesa pública sem um correspondente aumento da produtividade ou do emprego. A reintrodução de restrições à negociação surge, assim, como um mal menor.

A inflexão não resolve, no entanto, um problema essencial, que é o da escassez de técnicos especializados em determinadas áreas. Essa escassez tem criado grandes dificuldades em alguns organismos públicos, que, em resposta, sobrecarregam os seus técnicos mais competentes, incentivando-os à saída, e autocondenando-se a um processo de sangria viciosa. Nestes casos, a Lei prevê, é certo, que os organismos possam solicitar a abertura de concursos externos. Mas tais processos são morosos e estão deliberadamente pejados de obstáculos burocráticos, pois, afinal, o Estado como um todo tem que emagrecer.

O trabalho não é um bem homogéneo e a Função Pública não tem simplesmente trabalhadores a mais: tem demasiados trabalhadores com algumas competências e trabalhadores a menos com outras competências. Esse desajustamento não se corrige com a melhoria dos sistemas de incentivos nem com a reciclagem de trabalhadores em mobilidade especial. A sua correcção passa necessariamente pelo aumento da mobilidade entre a Função Pública e o sector privado, o que, por sua vez, só poderá ter lugar se ocorrer nos dois sentidos.
*Docente universitário

Fonte:  Jornal de Negócios, [negrito comentários nosso)

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