Este artigo de 2012 mostra bom como continuamos desaproveitar o potencial da Lusofonia.
Depois de ser a língua franca mundial na era dos Descobrimentos, o Português é agora a 6ª língua mais falada no mundo, mas talvez apenas a 20ª mais lida, ou mais respeitada.
Se não fizermos da língua portuguesa um ponto forte de ligação entre os nosso povos, vai certamente tornar-se um ponto fraco, na era da Internet.
Posted: 17 Oct 2012 06:21 AM PDT
Carlos Fino e Graciano Coutinho
Não é só o Brasil que nos esquece, somos nós que não nos fazemos lembrar.
A realização do Ano de Portugal no Brasil e do Ano do Brasil em Portugal, a decorrer entre 7 de Setembro deste ano e 10 de Junho de 2013, torna oportuna uma reflexão sobre as relações entre os dois países, ainda marcadas, apesar dos enormes progressos dos últimos anos, pelo sentimento de alguma estranheza e distanciamento, que a retórica oficial da fraternidade com base no sangue, na língua e na história comuns, disfarça mal e pouco ou nada contribui para ultrapassar.
Entre a crítica e o esquecimento
Quando, pela primeira vez, entrei para abastecer num posto de gasolina em Brasília, a jovem empregada, notando que havia algo de diferente na minha pronúncia, perguntou, intrigada: “Você fala muito bem português… De onde é que você é?”. Falando pausadamente, abrindo e destacando as sílabas para ter a certeza de ser bem compreendido, respondi-lhe com outra questão: “Sendo eu da Europa e falando esta língua, de onde você acha que eu sou?”… Ela revirou os olhos, franziu a testa, reflectiu, e arriscou: “Da França?” Percebendo que errara, ainda tentou uma alternativa: “Argentina?” E mais não ousou. Portugal nem sequer lhe passou pela cabeça, tendo que ser eu a dar-lhe a solução, que para ela não era óbvia.
Dias antes, ao desembarcar do avião ao cabo de dez horas de voo, experimentara aquela sensação, misto de orgulho e conforto (que os ingleses devem sentir um pouco por todo o mundo) de quem vê a sua língua falada noutro continente. Caramba! – Ali estava a minha pátria projectada do outro lado do Atlântico!
Agora, e como que em contraponto, apercebia-me com espanto de uma outra realidade: por norma, Portugal não está no radar do Brasil e o comum dos brasileiros, o chamado Povão, nem sequer relaciona a língua que fala com o país que somos.
Essa foi a primeira de uma série de lições que iria receber sobre as relações luso-brasileiras. Outra foi constatar que os Portugueses não são apenas a grande vítima das anedotas (ainda que bastante menos do que no passado), mas também verdadeiro bombo da festa sempre que se trata de apontar responsáveis pelos males do Brasil. Da burocracia à corrupção e ao nepotismo, da destruição da mata atlântica ao dizimar dos índios, passando pela escravidão e o atraso económico e social, não há grande problema passado ou presente do Brasil que não tenha a sua raiz na colonização portuguesa.
Cultivada nos meios académicos por uma sociologia de inspiração marxista e nacionalista que há muito desconstruiu e destronou a lusofilia de Gilberto Freyre, a ideologia que atribui os males do Brasil aos Portugueses está largamente disseminada entre as elites, cristalizou nos media e passou, por essa via, a integrar o senso comum da população.
Dos inúmeros exemplos que poderia citar, recordo três, ocorridos ao logo do período que vivi no Brasil, que traduzem bem este tipo de atitude.
Logo que comecei a trabalhar como conselheiro de imprensa na embaixada de Portugal, em 2004, deparei com uma entrevista de Dom Paulo Evaristo Arnes ao jornal O Globo, em que, a propósito do lançamento da sua autobiografia, o arcebispo emérito de São Paulo, referindo-se aos erros que o país não deveria voltar a cometer, concluía: “Esses erros foram cometidos a partir dos Portugueses que descobriram o Brasil e mandaram para cá a escória da sociedade, os menos preparados, os menos desejados em Portugal. (…) “Portanto, acho que Portugal tem tanta culpa como o Brasil.” (sic!).
No Verão de 2010, em visita à Europa poucos meses antes de ter sido eleita, a actual Presidente Dilma Rousseff, quando os jornalistas brasileiros que a acompanhavam lhe disseram que haviam passado por ali uns portugueses que os confundiram com argentinos, comentou: “Só mesmo portugueses para confundir brasileiros com argentinos…”.
Finalmente, pouco antes de regressar a Portugal, já no começo deste ano, ouvi na rádio CBN, da rede Globo, um dos seus principais colunistas, Arnaldo Jabor, afirmar, a propósito da crise na Europa, que “Os Portugueses são preguiçosos”… Apenas mais um dos seus costumados apartes pouco lisonjeiros para com o nosso país.
Em suma: sempre que a ocasião se apresenta, intelectuais, académicos, jornalistas, responsáveis religiosos e políticos brasileiros de diferentes quadrantes raramente perdem a oportunidade de lançar mais uma acha para a fogueira de um certo “anti-lusitanismo” difuso, prontos a evocar a herança negativa da colonização portuguesa e só muito raramente lembrando o seu legado positivo – um país imenso e rico, unificado sob a mesma língua, que soube evitar a fragmentação da América hispânica.
Mas a crítica jocosa ou ressentida – em que nos atribui grande importância, ainda que negativa – é apenas um dos pólos entre os quais o Brasil oscila em relação a Portugal. O outro é o permanente esquecimento, consciente ou inconsciente, da sua raiz portuguesa. Em Brasília, vi um dia uma exposição sobre o barroco brasileiro, patrocinada pelo Ministério das Relações Exteriores, em que não havia uma única referência a Portugal! Como se não tivesse ido daqui o barroco do Brasil e o seu principal expoente se não chamasse António Maria Lisboa!
Em situações semelhantes, para que não se diga que se está a omitir a verdade, o subterfúgio muitas vezes utilizado pelas entidades brasileiras responsáveis dos diferentes eventos é substituir a palavra “Portugal” pela palavra “Europa”. Onde deveria estar “influência portuguesa” passa a figurar “influência europeia”… Operação que aos olhos dos brasileiros tem uma dupla vantagem – oculta a raiz portuguesa e dá mais brilho à sua herança.
Para se avaliar até que ponto vai esse rasurar da memória portuguesa, basta lembrar, como assinalou Eduardo Lourenço em Imagem e Miragem da Lusofonia, que “o Brasil não celebra, nem nunca celebrou, a data da sua descoberta, como os Americanos festejam Colombo, que nem os “descobriu”. O Brasil – nota – “parece assim cometer um parricídio, mesmo inconsciente, vivendo-se, como realmente se vive, nos seus textos, nos seus sonhos, nas suas ambições planetárias, como uma nação sem pai.”
“Tupi or not tupi, that is the question”
Tentando explicar esta atitude, a psicanalista brasileira Maria Rita Khel afirmou que, no fundo, o Brasil gostaria de ter tido um pai rico – França, Holanda, Inglaterra, por exemplo – países europeus centrais e desenvolvidos, ao contrário do que aconteceu com Portugal, pai falido, que entrou em decadência menos de um século depois de Pedro Álvares Cabral ter chegado a terras de Vera Cruz…
Ditado pela natural necessidade de construir a sua própria identidade nacional, tanto mais precisa quanto a identificação com Portugal sempre foi muito forte, tendo-se mesmo prolongado muito para além da independência formal, em 1822, esse distanciamento em relação ao nosso país começou a afirmar-se no século XVII e atingiu o seu ponto culminante em 1922, na Semana de Arte Moderna de São Paulo, que marca a aberta e declarada construção de uma nova auto-imagem do Brasil.
Inspirado na história real do bispo Sardinha, de Salvador, devorado pelos índios caetés no século XVI, Oswald de Andrade, um dos epígonos do modernismo, lança, em 1928, o Manifesto Antropofágico, em que a indianidade é erigida em matriz da nacionalidade – os nativos vão devorar os que vieram de fora, os colonizados devorar os colonizadores, assim se tornando melhores e mais fortes: Brasileiros! Para que não restem dúvidas, Oswald enfatiza: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. (…) Tupi or not Tupi, that is the question”. E ainda: “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval”.
A partir daí, no processo de elaboração da identidade brasileira, passam a ser valorizadas todas as outras raízes que não a portuguesa: a índia, a negra, a europeia de diferentes proveniências (italiana, espanhola, alemã, polaca…), a árabe (sírio-libanesa) e até a japonesa. Quanto ao Português, pior do que ter isso comido e reassimilado, passou a ser sistematicamente desvalorizado, chegando por vezes a ser colocado, como fazem os Estados Unidos com os imigrantes hispânicos, europeus e asiáticos, no mesmo plano de qualquer outro “grupo étnico”! Isto num país em que a maioria da população tem sangue português, fala, ainda que de outro modo, a língua portuguesa, cujo território foi desbravado, alargado e defendido por portugueses e cujo património histórico e cultural de maior valor é, ainda hoje, na sua esmagadora maioria, de origem portuguesa. Como também assinalou Eduardo Lourenço, chegámos assim à situação paradoxal de Portugal, no Brasil, estar ao mesmo tempo em todo o lado e em lado nenhum.
Mais do que do que preconceito ou estranheza, chega mesmo, por vezes, a haver autêntico desdém pelas coisas portuguesas, como reconheceu um dos articulistas do jornal Folha de São Paulo, quando, em 1999, assinalou a publicação de Mitologia da Saudade, primeiro livro de Eduardo Lourenço publicado no Brasil. Antes de assinalar a inteligência e a subtileza sóbria “desse grande ensaísta”, o crítico brasileiro sentiu necessidade, para se legitimar perante os seus pares e o público intelectual para quem escrevia, de dizer o seguinte: ”Um livro sobre a saudade, escrito por um intelectual português, tem tudo para provocar reacções alérgicas no público brasileiro. Não há coisa a que sejamos mais refractários do que à cultura portuguesa. Para nós, é quase uma contradição nos próprios termos. Fernando Pessoa e José Saramago só passaram por nossa alfândega porque recalcámos a lusitanidade deles” (Marcelo Coelho, in Folha de São Paulo, caderno Mais, 5 de Setembro de1999).
Media lusa ausente, Portugal invisível
Este quadro, que só surpreenderá quem nunca tenha saído das águas plácidas do tautológico discurso oficial de uma nota só – que glosa até à saciedade a ideia de que Portugal e Brasil são “países irmãos unidos por uma amizade histórica” – não se fica entretanto a dever apenas aos brasileiros. Portugal também é responsável por isso. Não é só o Brasil que nos esquece, somos nós que não nos fazemos lembrar.
Antes de mais, porque conhecemos mal e nunca verdadeiramente valorizámos a nossa própria história no Brasil, talvez pelo facto de a epopeia portuguesa na América não estar nos Lusíadas. Camões morreu em 1580, assinalou que Portugal chegou à quarta parte nova “onde os campos ara” e que, “se mais mundo houvera, lá chegara”. Mas, praticamente toda a saga portuguesa do outro lado do Atlântico – da fundação das grandes cidades ao desbravamento e povoamento do território, da corrida ao ouro (que precede de dois séculos a sua similar do farwest), à defesa do país contra os invasores estrangeiros e, mais tarde, o abnegado trabalho de sucessivas gerações de emigrantes- tudo isso estava ainda por acontecer quando o poeta faleceu. Toda essa história está estudada nos seus diferentes e mais marcantes episódios, mas nunca foi compilada num só volume pela pena de um artista da dimensão de Camões que a fixasse para sempre na memória do país. Não estando nos Lusíadas, não está no imaginário nacional.
Depois, porque tem faltado, em particular na última década, uma estratégia devidamente articulada para nos tornarmos visíveis no Brasil, o que se traduz num comportamento casuístico e muitas vezes errático, em particular no plano mediático e cultural.
Desde finais da década de 90 para cá, o capital português começou a afluir ao Brasil, e Portugal chegou mesmo a ser, durante alguns anos, o terceiro maior investidor internacional no país, onde começaram a actuar algumas das maiores empresas nacionais, a maior parte delas com assinalável êxito. Hoje, para cima de 600 companhias com capital de origem portuguesa estão presentes no mercado brasileiro e o stock de capital português no Brasil ultrapassa os 15 mil milhões de dólares, assegurando para cima de 100 mil postos de trabalho directos.
Mas os media portugueses não acompanharam este movimento. Cabe, com efeito, perguntar: onde estão os media portugueses no Brasil? Onde estão os acordos de jornais com jornais, rádios com rádios, televisões com televisões, agências de notícias de um e outro país? Onde está o esforço da agência portuguesa de notícias para se afirmar no mercado brasileiro?
E as questões poderiam continuar: Porque é que a RTP tem, há anos, estruturas e investimentos importantes em todos os países de língua portuguesa, excepto no Brasil, onde se limita a ter um correspondente no Rio de Janeiro? Porque é que há uma RTP-África e não há uma RTP-Brasil? Porque é que a agência Lusa, que chegou a ter uma forte delegação em Brasília e já teve até uma Lusa-Brasil, sediada em São Paulo, agora tem apenas correspondentes locais que se limitam a mandar informação do Brasil, mas não fazem qualquer esforço para penetrar no Brasil? Porque é que o sítio da agência portuguesa de notícias é um dos mais fechados de todas as agências similares que estão presentes no Brasil? Porque é que a BBC tem uma parceria com uma grande rádio brasileira, a CBN, da rede Globo, a Radio France Internacional um acordo com a empresa pública brasileira de comunicação EBC e outro com a rede de rádios Radioweb e Portugal não tem nada disso?
A Aicep e o Turismo de Portugal promovem visitas regulares de jornalistas brasileiros das áreas do turismo e dos vinhos ao nosso país. Mas não existe, até agora, nenhuma acção semelhante dirigida aos colunistas e líderes de opinião brasileiros, nem qualquer programa de intercâmbio regular entre redacções dos dois países.
O apagão mediático português no Brasil que assim se prolonga e amplia tem já consequências estratégicas: as notícias de Portugal no maior país de língua portuguesa do mundo são dadas, cada vez mais, pela agência espanhola EFE!
Estratégia precisa-se
Apesar do inestimável serviço da TAP, hoje com 70 voos semanais unindo Lisboa e Porto com 10 das maiores capitais brasileiras, a verdade é que Portugal e Brasil ainda se ignoram muito: o Brasil não conhece ou conhece mal o Portugal mais moderno e Portugal desconhece o Brasil emergente e conhece mal, ou tem bastante esquecida e subvalorizada, a sua própria história no Brasil.
Dada a nossa proverbial escassez de meios, agora agravada pela crise, e na ausência de qualquer organismo encarregado da projecção externa do Estado, que a democracia portuguesa nunca criou, equacionar uma estratégia de continuada projecção de Portugal no Brasil é certamente uma missão difícil. Mas alguma coisa se poderia, mesmo assim, fazer, tendo em conta as imensas possibilidades abertas pelas novas tecnologias e o facto de Portugal poder contar no Brasil com uma grande comunidade de origem lusa, a par de uma vasta estrutura de representação diplomática, consular e comercial. E isso é tanto mais urgente quanto é certo que aos poucos vai saindo de cena todo um conjunto de personalidades tradicionais amigas de Portugal com cuja boa vontade o nosso país pôde contar para promover iniciativas que melhor ou pior iam mantendo viva uma certa presença cultural portuguesa no Brasil.
Talvez se pudesse começar por promover um Encontro Media/Negócios que colocasse frente a frente os principais responsáveis e órgãos de comunicação dos dois países, com o objectivo de se estabelecerem acordos cruzados capazes de potenciar as enormes possibilidades de cooperação que estão por explorar. O Ano de Portugal no Brasil e o Ano do Brasil em Portugal, que agora se iniciam, fornecem um bom contexto para promover uma iniciativa conjunta do género.
Com efeito, mais do que celebrações pontuais, que cíclica e ritualmente nos aproximam , mas são no fundo ilhas no mar de um afastamento cultural que permanece profundo e tende a alargar-se, valeria a pena tentar lançar as bases de uma aproximação mútua estruturante, capaz de permanecer de forma continuada e desenvolver, na base de intenso diálogo, o enorme potencial das nossas relações bilaterais. Mas isso terá de ser feito partindo do reconhecimento da distância e do “estranhamento” que entretanto se instalaram e que não vale a pena disfarçar com o discurso onírico da retórica oficial. Como também já assinalou Eduardo Lourenço, a narrativa do “país irmão” visa, no fundo, esconder a relação de origem país colonial/país colonizado que os brasileiros não querem evocar, como se fossem filhos de si mesmos, recalcando sempre o acto fundador português. Insistir nesse discurso equivale a um diálogo de surdos institucional assente na invisibilidade mútua, uma desfocagem de visão: por excesso (de Portugal em relação ao Brasil) ou por escassez (do Brasil em relação a Portugal).
Se nada for feito, arriscamo-nos a que se possa dizer de Portugal e do Brasil o que certa vez Bernard Shaw afirmou sobre os EUA e a Inglaterra – serem dois países separados pela mesma língua. Daí para cá, América e Grã-Bretanha souberam construir uma special relationship. O crescente imbricar de interesses de empresas portuguesas com brasileiras – PT com Oi, Camargo Correa e Votorantim com Cimpor, Galp com Petrobras… – talvez forneça o terreno para que entre Portugal e Brasil venha também um dia a existir uma idêntica relação especial. Tanto mais que o Brasil, à medida que se desenvolve e perde o “complexo de viralata” de que falava Nelson Rodrigues, tenderá a ser mais generoso para com a sua própria história, e portanto, também para com Portugal.
Mas não podemos esperar que isso aconteça por geração espontânea. Temos que agir nesse sentido, encarando as coisas como elas são, assumindo um relacionamento descomplexado e realista e sobretudo garantindo uma muito maior projecção da nossa cultura no Brasil. Dada a desproporção existente entre os dois países, haverá sempre uma diferença de impacto assinalável. Para já não falar das telenovelas, é garantido que qualquer acção cultural do Brasil em Portugal, ainda que pouco relevante, terá sempre assegurada ampla repercussão, enquanto a inversa não é verdadeira. Qualquer acção nossa, mesmo de mérito internacional reconhecido, se não for acompanhada por intensa acção mediática, passará despercebida do grande público brasileiro, como aliás aconteceu o ano passado, por exemplo, com a exposição de Paula Rego na pinacoteca de São Paulo.
Em 2000, ao fazer o balanço das comemorações dos 500 anos da Descoberta do Brasil, Eduardo Prado Coelho escreveu que se o nosso país quisesse assegurar uma presença relevante além Atlântico teria de “actuar em termos muito intensos de indústria cultural e ocupação mediática”. De então para cá, alguma coisa se fez. Para além do culto a Pessoa e a reverência para com Saramago, que continuam muito presentes, um punhado de autores portugueses contemporâneos – Miguel Sousa Tavares, Inês Pedrosa, Gonçalo M. Tavares, José Luís Peixoto, valter hugo mãe… – são hoje conhecidos no Brasil e a presença da Babel e da Leya introduz uma nota de prestígio no mercado editorial brasileiro. Os acordos de cooperação no cinema e no teatro, lançados pelo Tratado de Amizade e Cooperação de 2000, produzem também os seus frutos. No fado, Mariza é nome consagrado e, mais recentemente, Kátia Guerreiro, António Zambujo e Carminho, entre outros, também abrem caminho. Largas centenas de estudantes brasileiros fazem os seus cursos em universidades portuguesas e mantém-se intenso o diálogo académico a diferentes níveis.
Continua, entretanto, a faltar a tudo isso expressão mediática. Em 2004, a Globo retirou a RTP da sua rede de distribuição por cabo e a estação pública portuguesa perdeu, de um dia para o outro, 2/3 da sua audiência no Brasil. As emissões da SIC, que a substituíram, baseadas que são na programação interna portuguesa, não dialogam verdadeiramente com os diversos públicos do Brasil e a generalidade da imprensa brasileira continua a ignorar Portugal, excepto pelas más razões.
O alerta lançado há doze anos por Prado Coelho continua, portanto, actual. E a construção de uma relação especial entre os dois países permanece um desígnio por cumprir. O desafio é imenso e os meios são escassos, o que nos leva logo a pensar em Chico Buarque: “Tanto mar, tanto mar…”. Mas, como lembrou Mia Couto, “O mar foi ontem o que o idioma pode ser hoje – basta vencer alguns adamastores”.
Carlos Fino, jornalista, com Portugal Digital
[Fonte: blog.opovo.com.br/ portugalsempassaporte]
Entre a crítica e o esquecimento
Quando, pela primeira vez, entrei para abastecer num posto de gasolina em Brasília, a jovem empregada, notando que havia algo de diferente na minha pronúncia, perguntou, intrigada: “Você fala muito bem português… De onde é que você é?”. Falando pausadamente, abrindo e destacando as sílabas para ter a certeza de ser bem compreendido, respondi-lhe com outra questão: “Sendo eu da Europa e falando esta língua, de onde você acha que eu sou?”… Ela revirou os olhos, franziu a testa, reflectiu, e arriscou: “Da França?” Percebendo que errara, ainda tentou uma alternativa: “Argentina?” E mais não ousou. Portugal nem sequer lhe passou pela cabeça, tendo que ser eu a dar-lhe a solução, que para ela não era óbvia.
Dias antes, ao desembarcar do avião ao cabo de dez horas de voo, experimentara aquela sensação, misto de orgulho e conforto (que os ingleses devem sentir um pouco por todo o mundo) de quem vê a sua língua falada noutro continente. Caramba! – Ali estava a minha pátria projectada do outro lado do Atlântico!
Agora, e como que em contraponto, apercebia-me com espanto de uma outra realidade: por norma, Portugal não está no radar do Brasil e o comum dos brasileiros, o chamado Povão, nem sequer relaciona a língua que fala com o país que somos.
Essa foi a primeira de uma série de lições que iria receber sobre as relações luso-brasileiras. Outra foi constatar que os Portugueses não são apenas a grande vítima das anedotas (ainda que bastante menos do que no passado), mas também verdadeiro bombo da festa sempre que se trata de apontar responsáveis pelos males do Brasil. Da burocracia à corrupção e ao nepotismo, da destruição da mata atlântica ao dizimar dos índios, passando pela escravidão e o atraso económico e social, não há grande problema passado ou presente do Brasil que não tenha a sua raiz na colonização portuguesa.
Cultivada nos meios académicos por uma sociologia de inspiração marxista e nacionalista que há muito desconstruiu e destronou a lusofilia de Gilberto Freyre, a ideologia que atribui os males do Brasil aos Portugueses está largamente disseminada entre as elites, cristalizou nos media e passou, por essa via, a integrar o senso comum da população.
Dos inúmeros exemplos que poderia citar, recordo três, ocorridos ao logo do período que vivi no Brasil, que traduzem bem este tipo de atitude.
Logo que comecei a trabalhar como conselheiro de imprensa na embaixada de Portugal, em 2004, deparei com uma entrevista de Dom Paulo Evaristo Arnes ao jornal O Globo, em que, a propósito do lançamento da sua autobiografia, o arcebispo emérito de São Paulo, referindo-se aos erros que o país não deveria voltar a cometer, concluía: “Esses erros foram cometidos a partir dos Portugueses que descobriram o Brasil e mandaram para cá a escória da sociedade, os menos preparados, os menos desejados em Portugal. (…) “Portanto, acho que Portugal tem tanta culpa como o Brasil.” (sic!).
No Verão de 2010, em visita à Europa poucos meses antes de ter sido eleita, a actual Presidente Dilma Rousseff, quando os jornalistas brasileiros que a acompanhavam lhe disseram que haviam passado por ali uns portugueses que os confundiram com argentinos, comentou: “Só mesmo portugueses para confundir brasileiros com argentinos…”.
Finalmente, pouco antes de regressar a Portugal, já no começo deste ano, ouvi na rádio CBN, da rede Globo, um dos seus principais colunistas, Arnaldo Jabor, afirmar, a propósito da crise na Europa, que “Os Portugueses são preguiçosos”… Apenas mais um dos seus costumados apartes pouco lisonjeiros para com o nosso país.
Em suma: sempre que a ocasião se apresenta, intelectuais, académicos, jornalistas, responsáveis religiosos e políticos brasileiros de diferentes quadrantes raramente perdem a oportunidade de lançar mais uma acha para a fogueira de um certo “anti-lusitanismo” difuso, prontos a evocar a herança negativa da colonização portuguesa e só muito raramente lembrando o seu legado positivo – um país imenso e rico, unificado sob a mesma língua, que soube evitar a fragmentação da América hispânica.
Mas a crítica jocosa ou ressentida – em que nos atribui grande importância, ainda que negativa – é apenas um dos pólos entre os quais o Brasil oscila em relação a Portugal. O outro é o permanente esquecimento, consciente ou inconsciente, da sua raiz portuguesa. Em Brasília, vi um dia uma exposição sobre o barroco brasileiro, patrocinada pelo Ministério das Relações Exteriores, em que não havia uma única referência a Portugal! Como se não tivesse ido daqui o barroco do Brasil e o seu principal expoente se não chamasse António Maria Lisboa!
Em situações semelhantes, para que não se diga que se está a omitir a verdade, o subterfúgio muitas vezes utilizado pelas entidades brasileiras responsáveis dos diferentes eventos é substituir a palavra “Portugal” pela palavra “Europa”. Onde deveria estar “influência portuguesa” passa a figurar “influência europeia”… Operação que aos olhos dos brasileiros tem uma dupla vantagem – oculta a raiz portuguesa e dá mais brilho à sua herança.
Para se avaliar até que ponto vai esse rasurar da memória portuguesa, basta lembrar, como assinalou Eduardo Lourenço em Imagem e Miragem da Lusofonia, que “o Brasil não celebra, nem nunca celebrou, a data da sua descoberta, como os Americanos festejam Colombo, que nem os “descobriu”. O Brasil – nota – “parece assim cometer um parricídio, mesmo inconsciente, vivendo-se, como realmente se vive, nos seus textos, nos seus sonhos, nas suas ambições planetárias, como uma nação sem pai.”
“Tupi or not tupi, that is the question”
Tentando explicar esta atitude, a psicanalista brasileira Maria Rita Khel afirmou que, no fundo, o Brasil gostaria de ter tido um pai rico – França, Holanda, Inglaterra, por exemplo – países europeus centrais e desenvolvidos, ao contrário do que aconteceu com Portugal, pai falido, que entrou em decadência menos de um século depois de Pedro Álvares Cabral ter chegado a terras de Vera Cruz…
Ditado pela natural necessidade de construir a sua própria identidade nacional, tanto mais precisa quanto a identificação com Portugal sempre foi muito forte, tendo-se mesmo prolongado muito para além da independência formal, em 1822, esse distanciamento em relação ao nosso país começou a afirmar-se no século XVII e atingiu o seu ponto culminante em 1922, na Semana de Arte Moderna de São Paulo, que marca a aberta e declarada construção de uma nova auto-imagem do Brasil.
Inspirado na história real do bispo Sardinha, de Salvador, devorado pelos índios caetés no século XVI, Oswald de Andrade, um dos epígonos do modernismo, lança, em 1928, o Manifesto Antropofágico, em que a indianidade é erigida em matriz da nacionalidade – os nativos vão devorar os que vieram de fora, os colonizados devorar os colonizadores, assim se tornando melhores e mais fortes: Brasileiros! Para que não restem dúvidas, Oswald enfatiza: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. (…) Tupi or not Tupi, that is the question”. E ainda: “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval”.
A partir daí, no processo de elaboração da identidade brasileira, passam a ser valorizadas todas as outras raízes que não a portuguesa: a índia, a negra, a europeia de diferentes proveniências (italiana, espanhola, alemã, polaca…), a árabe (sírio-libanesa) e até a japonesa. Quanto ao Português, pior do que ter isso comido e reassimilado, passou a ser sistematicamente desvalorizado, chegando por vezes a ser colocado, como fazem os Estados Unidos com os imigrantes hispânicos, europeus e asiáticos, no mesmo plano de qualquer outro “grupo étnico”! Isto num país em que a maioria da população tem sangue português, fala, ainda que de outro modo, a língua portuguesa, cujo território foi desbravado, alargado e defendido por portugueses e cujo património histórico e cultural de maior valor é, ainda hoje, na sua esmagadora maioria, de origem portuguesa. Como também assinalou Eduardo Lourenço, chegámos assim à situação paradoxal de Portugal, no Brasil, estar ao mesmo tempo em todo o lado e em lado nenhum.
Mais do que do que preconceito ou estranheza, chega mesmo, por vezes, a haver autêntico desdém pelas coisas portuguesas, como reconheceu um dos articulistas do jornal Folha de São Paulo, quando, em 1999, assinalou a publicação de Mitologia da Saudade, primeiro livro de Eduardo Lourenço publicado no Brasil. Antes de assinalar a inteligência e a subtileza sóbria “desse grande ensaísta”, o crítico brasileiro sentiu necessidade, para se legitimar perante os seus pares e o público intelectual para quem escrevia, de dizer o seguinte: ”Um livro sobre a saudade, escrito por um intelectual português, tem tudo para provocar reacções alérgicas no público brasileiro. Não há coisa a que sejamos mais refractários do que à cultura portuguesa. Para nós, é quase uma contradição nos próprios termos. Fernando Pessoa e José Saramago só passaram por nossa alfândega porque recalcámos a lusitanidade deles” (Marcelo Coelho, in Folha de São Paulo, caderno Mais, 5 de Setembro de1999).
Media lusa ausente, Portugal invisível
Este quadro, que só surpreenderá quem nunca tenha saído das águas plácidas do tautológico discurso oficial de uma nota só – que glosa até à saciedade a ideia de que Portugal e Brasil são “países irmãos unidos por uma amizade histórica” – não se fica entretanto a dever apenas aos brasileiros. Portugal também é responsável por isso. Não é só o Brasil que nos esquece, somos nós que não nos fazemos lembrar.
Antes de mais, porque conhecemos mal e nunca verdadeiramente valorizámos a nossa própria história no Brasil, talvez pelo facto de a epopeia portuguesa na América não estar nos Lusíadas. Camões morreu em 1580, assinalou que Portugal chegou à quarta parte nova “onde os campos ara” e que, “se mais mundo houvera, lá chegara”. Mas, praticamente toda a saga portuguesa do outro lado do Atlântico – da fundação das grandes cidades ao desbravamento e povoamento do território, da corrida ao ouro (que precede de dois séculos a sua similar do farwest), à defesa do país contra os invasores estrangeiros e, mais tarde, o abnegado trabalho de sucessivas gerações de emigrantes- tudo isso estava ainda por acontecer quando o poeta faleceu. Toda essa história está estudada nos seus diferentes e mais marcantes episódios, mas nunca foi compilada num só volume pela pena de um artista da dimensão de Camões que a fixasse para sempre na memória do país. Não estando nos Lusíadas, não está no imaginário nacional.
Depois, porque tem faltado, em particular na última década, uma estratégia devidamente articulada para nos tornarmos visíveis no Brasil, o que se traduz num comportamento casuístico e muitas vezes errático, em particular no plano mediático e cultural.
Desde finais da década de 90 para cá, o capital português começou a afluir ao Brasil, e Portugal chegou mesmo a ser, durante alguns anos, o terceiro maior investidor internacional no país, onde começaram a actuar algumas das maiores empresas nacionais, a maior parte delas com assinalável êxito. Hoje, para cima de 600 companhias com capital de origem portuguesa estão presentes no mercado brasileiro e o stock de capital português no Brasil ultrapassa os 15 mil milhões de dólares, assegurando para cima de 100 mil postos de trabalho directos.
Mas os media portugueses não acompanharam este movimento. Cabe, com efeito, perguntar: onde estão os media portugueses no Brasil? Onde estão os acordos de jornais com jornais, rádios com rádios, televisões com televisões, agências de notícias de um e outro país? Onde está o esforço da agência portuguesa de notícias para se afirmar no mercado brasileiro?
E as questões poderiam continuar: Porque é que a RTP tem, há anos, estruturas e investimentos importantes em todos os países de língua portuguesa, excepto no Brasil, onde se limita a ter um correspondente no Rio de Janeiro? Porque é que há uma RTP-África e não há uma RTP-Brasil? Porque é que a agência Lusa, que chegou a ter uma forte delegação em Brasília e já teve até uma Lusa-Brasil, sediada em São Paulo, agora tem apenas correspondentes locais que se limitam a mandar informação do Brasil, mas não fazem qualquer esforço para penetrar no Brasil? Porque é que o sítio da agência portuguesa de notícias é um dos mais fechados de todas as agências similares que estão presentes no Brasil? Porque é que a BBC tem uma parceria com uma grande rádio brasileira, a CBN, da rede Globo, a Radio France Internacional um acordo com a empresa pública brasileira de comunicação EBC e outro com a rede de rádios Radioweb e Portugal não tem nada disso?
A Aicep e o Turismo de Portugal promovem visitas regulares de jornalistas brasileiros das áreas do turismo e dos vinhos ao nosso país. Mas não existe, até agora, nenhuma acção semelhante dirigida aos colunistas e líderes de opinião brasileiros, nem qualquer programa de intercâmbio regular entre redacções dos dois países.
O apagão mediático português no Brasil que assim se prolonga e amplia tem já consequências estratégicas: as notícias de Portugal no maior país de língua portuguesa do mundo são dadas, cada vez mais, pela agência espanhola EFE!
Estratégia precisa-se
Apesar do inestimável serviço da TAP, hoje com 70 voos semanais unindo Lisboa e Porto com 10 das maiores capitais brasileiras, a verdade é que Portugal e Brasil ainda se ignoram muito: o Brasil não conhece ou conhece mal o Portugal mais moderno e Portugal desconhece o Brasil emergente e conhece mal, ou tem bastante esquecida e subvalorizada, a sua própria história no Brasil.
Dada a nossa proverbial escassez de meios, agora agravada pela crise, e na ausência de qualquer organismo encarregado da projecção externa do Estado, que a democracia portuguesa nunca criou, equacionar uma estratégia de continuada projecção de Portugal no Brasil é certamente uma missão difícil. Mas alguma coisa se poderia, mesmo assim, fazer, tendo em conta as imensas possibilidades abertas pelas novas tecnologias e o facto de Portugal poder contar no Brasil com uma grande comunidade de origem lusa, a par de uma vasta estrutura de representação diplomática, consular e comercial. E isso é tanto mais urgente quanto é certo que aos poucos vai saindo de cena todo um conjunto de personalidades tradicionais amigas de Portugal com cuja boa vontade o nosso país pôde contar para promover iniciativas que melhor ou pior iam mantendo viva uma certa presença cultural portuguesa no Brasil.
Talvez se pudesse começar por promover um Encontro Media/Negócios que colocasse frente a frente os principais responsáveis e órgãos de comunicação dos dois países, com o objectivo de se estabelecerem acordos cruzados capazes de potenciar as enormes possibilidades de cooperação que estão por explorar. O Ano de Portugal no Brasil e o Ano do Brasil em Portugal, que agora se iniciam, fornecem um bom contexto para promover uma iniciativa conjunta do género.
Com efeito, mais do que celebrações pontuais, que cíclica e ritualmente nos aproximam , mas são no fundo ilhas no mar de um afastamento cultural que permanece profundo e tende a alargar-se, valeria a pena tentar lançar as bases de uma aproximação mútua estruturante, capaz de permanecer de forma continuada e desenvolver, na base de intenso diálogo, o enorme potencial das nossas relações bilaterais. Mas isso terá de ser feito partindo do reconhecimento da distância e do “estranhamento” que entretanto se instalaram e que não vale a pena disfarçar com o discurso onírico da retórica oficial. Como também já assinalou Eduardo Lourenço, a narrativa do “país irmão” visa, no fundo, esconder a relação de origem país colonial/país colonizado que os brasileiros não querem evocar, como se fossem filhos de si mesmos, recalcando sempre o acto fundador português. Insistir nesse discurso equivale a um diálogo de surdos institucional assente na invisibilidade mútua, uma desfocagem de visão: por excesso (de Portugal em relação ao Brasil) ou por escassez (do Brasil em relação a Portugal).
Se nada for feito, arriscamo-nos a que se possa dizer de Portugal e do Brasil o que certa vez Bernard Shaw afirmou sobre os EUA e a Inglaterra – serem dois países separados pela mesma língua. Daí para cá, América e Grã-Bretanha souberam construir uma special relationship. O crescente imbricar de interesses de empresas portuguesas com brasileiras – PT com Oi, Camargo Correa e Votorantim com Cimpor, Galp com Petrobras… – talvez forneça o terreno para que entre Portugal e Brasil venha também um dia a existir uma idêntica relação especial. Tanto mais que o Brasil, à medida que se desenvolve e perde o “complexo de viralata” de que falava Nelson Rodrigues, tenderá a ser mais generoso para com a sua própria história, e portanto, também para com Portugal.
Mas não podemos esperar que isso aconteça por geração espontânea. Temos que agir nesse sentido, encarando as coisas como elas são, assumindo um relacionamento descomplexado e realista e sobretudo garantindo uma muito maior projecção da nossa cultura no Brasil. Dada a desproporção existente entre os dois países, haverá sempre uma diferença de impacto assinalável. Para já não falar das telenovelas, é garantido que qualquer acção cultural do Brasil em Portugal, ainda que pouco relevante, terá sempre assegurada ampla repercussão, enquanto a inversa não é verdadeira. Qualquer acção nossa, mesmo de mérito internacional reconhecido, se não for acompanhada por intensa acção mediática, passará despercebida do grande público brasileiro, como aliás aconteceu o ano passado, por exemplo, com a exposição de Paula Rego na pinacoteca de São Paulo.
Em 2000, ao fazer o balanço das comemorações dos 500 anos da Descoberta do Brasil, Eduardo Prado Coelho escreveu que se o nosso país quisesse assegurar uma presença relevante além Atlântico teria de “actuar em termos muito intensos de indústria cultural e ocupação mediática”. De então para cá, alguma coisa se fez. Para além do culto a Pessoa e a reverência para com Saramago, que continuam muito presentes, um punhado de autores portugueses contemporâneos – Miguel Sousa Tavares, Inês Pedrosa, Gonçalo M. Tavares, José Luís Peixoto, valter hugo mãe… – são hoje conhecidos no Brasil e a presença da Babel e da Leya introduz uma nota de prestígio no mercado editorial brasileiro. Os acordos de cooperação no cinema e no teatro, lançados pelo Tratado de Amizade e Cooperação de 2000, produzem também os seus frutos. No fado, Mariza é nome consagrado e, mais recentemente, Kátia Guerreiro, António Zambujo e Carminho, entre outros, também abrem caminho. Largas centenas de estudantes brasileiros fazem os seus cursos em universidades portuguesas e mantém-se intenso o diálogo académico a diferentes níveis.
Continua, entretanto, a faltar a tudo isso expressão mediática. Em 2004, a Globo retirou a RTP da sua rede de distribuição por cabo e a estação pública portuguesa perdeu, de um dia para o outro, 2/3 da sua audiência no Brasil. As emissões da SIC, que a substituíram, baseadas que são na programação interna portuguesa, não dialogam verdadeiramente com os diversos públicos do Brasil e a generalidade da imprensa brasileira continua a ignorar Portugal, excepto pelas más razões.
O alerta lançado há doze anos por Prado Coelho continua, portanto, actual. E a construção de uma relação especial entre os dois países permanece um desígnio por cumprir. O desafio é imenso e os meios são escassos, o que nos leva logo a pensar em Chico Buarque: “Tanto mar, tanto mar…”. Mas, como lembrou Mia Couto, “O mar foi ontem o que o idioma pode ser hoje – basta vencer alguns adamastores”.
Carlos Fino, jornalista, com Portugal Digital
[Fonte: blog.opovo.com.br/
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