O jogo-do-empurra de como ajudar a Grécia, e os outros países periféricos, a sair da crise de sobre endividamento entrou agora numa nova fase, com os credores oficiais europeus a tentar envolver os credores privados numa solução de longo prazo.
Enquanto alguns continuam a censurar os gregos pela sua indisciplina financeira, os principais analistas já tinham chegado à conclusão que o resgate de €110 mil milhões aprovado em Maio 2010, dos quais €53 mil milhões já foram desembolsados, não iria ser suficiente para repor a sustentabilidade da economia grega, ainda que apoiado em fortes medidas de austeridade.
E Moody's acaba de reduzir o rating de Portugal para níveis especulativos porque considera que o resgate de €78 mil milhões também será insuficiente.
Assim, o FMI, que contribuiu com 27,5% desse Resgate I grego, avisou recentemente em Maio que não iria autorizar o desembolso da quinta tranche de €12 mil milhões em Julho 2011, a menos que houvesse um reforço de fundos para garantir os pagamentos nos próximos 12 meses.
Isto, apesar da avaliação geralmente positiva feita pelos analistas da EU/FMI à evolução dos indicadores económicos gregos. A Grécia reduziu o seu défice público em mais de cinco pontos percentuais do PIB em 2010, o maior corte orçamental dos países membros da OCDE nos últimos 25 anos. E reduziu o défice da Balança de Transacções Correntes para -11,8% do PIB em 2010 e provavelmente para -9,9% em 2011. Mas a Divida Externa Liquida grega vai provavelmente saltar de 129,5% do PIB no final de 2010 para 140,5% em 2011. O país arrasta-se no terceiro ano de recessão (redução de -3,9% do PIB em 2011), o desemprego bate recordes acima de 16% e as greves gerais e protestos enchem a Praça Syntagma.
Do seu lado, os credores oficiais do Eurogrupo, os 17 países do Euro, tiveram que suportar grande parte do esforço de financiamento da economia grega, com o plano de Resgate I e com a acumulação de montantes pendentes de cobrança do Banco Central da Grécia (ao abrigo do sistema TARGET) que chegaram a €87 milhões a Dezembro 2010 (e €60 milhões no caso do Banco de Portugal). Adicionalmente, os bancos gregos e portugueses estavam a utilizar €97,7 milhões e €40,9 milhões de liquidez do ECB no final do ano passado. De facto, os credores privados internacionais aproveitaram este período de "crise-sem-default" para reduzir a sua exposição à Grécia, e aos outros países em crise, o que forçou os credores oficiais do Eurogrupo a aumentar o seu envolvimento.
E o esforço dos credores oficiais do Eurogrupo-17 é bastante mais que proporcional à exposição dos seus bancos à divida grega. Por exemplo, os bancos sediados no Reino Unido são o terceiro maior grupo de credores da Grécia, depois da França e da Alemanha, mas o governo britânico tem conseguido distanciar-se. Obviamente, estes apoios aos países sobre endividados, e aos seus credores internacionais, são objecto de forte oposição da parte dos eleitores e contribuintes.
Por isso, não é surpresa que o Eurogrupo venha agora impor novas condições para liderar o Resgate II, outro pacote de resgate estimado em €85 mil milhões para a Grécia, nomeadamente a aprovação e implementação de um novo programa de austeridade, e, sobretudo, o envolvimento do credores privados na partilha do sacrifício. E a Finlândia ainda vai exigir garantias adicionais (collateral), como já fez no passado.
O Parlamento grego fez a sua parte a 29-Junho-2011 ao aprovar novas medidas de austeridade orçamental, no total de €28 mil milhões, junto com um ambicioso programa de privatizações estimado em €50 mil milhões. Como sempre, a prova real estará na implementação.
Os detalhes do “envolvimento do sector privado” ainda estão por definir e a sua negociação vai fazer correr muita tinta. Em princípio, espera-se um contributo de €30 mil milhões dos credores privados, cerca de 25% da exposição de €116 mil milhões dos bancos dos seis principais países credores, incluindo o Reino Unido e os Estados Unidos. Isto fica bastante abaixo do “haircut”de 40% que se comenta e parece estar implícito nas taxas de juro.
Este contributo dos credores privados pode vir a tomar a forma de novos créditos de longo prazo (new money) ou a forma de reestruturação voluntária da dívida existente (prolongamento de prazos, ou redução de juros), o que as agências de rating poderião classificar de “default selectivo”.
O ECB mantém a sua oposição a qualquer solução que implique a classificação da dívida grega em default, ameaçando deixar de aceitar activos gregos como caução nas suas facilidades de liquidez. É possível que o ECB necessite de apoio especial dos seus accionistas para continuar a prestar liquidez aos bancos de países membros que entrem em default.
Adicionalmente, a declaração de um “credit event” permitiria aos investidores accionar a protecção dos CDS, crédit default swaps, uma possibilidade que parece aterradora para o mercado. Os CDS registados representam pouco mais de 1% da divida grega, e não se sabe ao certo quem terá vendido protecção contra o default da Grécia, contra prémios leoninos acima de 10% e 15%.
Curiosamente, alguns analistas estimam que o grosso do “envolvimento dos credores privados” venha dos investidores locais, isto é dos bancos, fundos de investimento, fundos de pensões e aforradores gregos, ficando os credores internacionais praticamente a salvo. Este estranho resultado do “jogo do empurra” seria uma situação praticamente sem precedentes na Europa moderna, pois os investidores locais seriam duplamente sacrificados, com maior carga fiscal e com maior perda de valor dos activos.
De facto, a crise de endividamento dos países da Eurozone está a entrar por “mares nunca dantes navegados” em termos de finanças internacionais.
Desde logo, os programas de ajustamento negociados com o FMI são muito diferentes do habitual, na medida em que referem poucas medidas para o sector externo e para a balança de pagamentos. Ainda está por provar, se um país consegue fazer ajustamentos desta magnitude só com austeridade interna e sem os tradicionais instrumentos de política externa incluindo desvalorização, tarifas alfandegárias e ajustes na política monetária e de crédito.
Depois, o habitual jogo-do-empurra entre os credores é bastante mais complicado sem a diferença da moeda, que permitia distinguir facilmente entre credores internacionais e os investidores locais.
Houve tempos em que a reestruturação de dívida externa privilegiava os investidores obrigacionistas, que conseguiam escapar à obrigatoriedade de reestruturar a divida existente e de contribuir novos créditos, por serem detentores de “obrigações ao portador”. Nos 1980’s, esta fuga era pouco importante porque a dívida externa dos países da América Latina era sobretudo dívida bancária.
Com a integração financeira da Eurozone, estamos numa situação desconhecida, de “tudo ao molhe e fé em Deus”. Previsivelmente, qualquer tentativa de impor cortes nos valores dos activos detidos pelos investidores e aforradores locais resultaria numa fuga de capitais de proporções e consequências imponderáveis.
Se o Estado tem um problema de sobre endividamento em geral, o país no seu todo tem um problema de excesso de dívida externa, em boa parte devido ao facilitismo na concessão de crédito da parte de credores internacionais e à falha de regulação prudencial nos países de origem dos bancos credores.
Se é verdade que os credores internacionais, cujo facilitismo fez parte do problema, devem, voluntariamente, fazer parte da solução, não haverá mesmo solução nenhuma sem os aforradores locais.
Nesta guerra de nervos, a redução do rating de Portugal é mais um aviso ao Eurogrupo de não continuar a insistir que os credores privados internacionais participem na solução. Os contribuintes que paguem a crise.
Os contribuintes gregos, portugueses, irlandeses e islandeses já estão a pagar.
Mariana Abrantes de Sousa
Economista - PPP Lusofonia
O conteúdo deste artigo fez parte da discussão transmitida no programa Comissão Executiva da ETV de 4-Julho-2011